Caipirices
Manhã de domingo, chuvosa como aprecio, quatro horas a me separar do plantão de fim de semana, dois textos para concluir, umas contas para fechar – e, na TV, três programas de música brasileira. Sim, brasileira, porque caipira, daquelas boas, dos tempos em que sertanejo revelava o sertão de verdade, a lida do campo, a terra batida, o aboio da manada, o país caboclo, rural e ingênuo.
Inezita Barroso, oitentona, já meio alquebrada, traz Chitãozinho e Xororó, dupla cujo nome se inspirou no pré-histórico “Inhambu-xintã e o xororó”, ícone do mato e dos grotões. Tem que ser assim, porque o programa da Cultura não tolera essa gente que pegou carona no gosto suburbano, na trilha de novela, nos universitários sem tutano.
Logo abaixo, uma atração eclética, tendo o caipira de diferentes épocas como fio condutor. O apresentador da TV Câmara é um mineirinho com fala típica, engraçado e matreiro, que cutuca os convidados e os faz cantar o que ele quer ouvir. Por fim, o velho e bom Rolando Boldrin, contando causos e trazendo artistas da mais alta estirpe, sertanejos ou não.
As horas correm, os textos ainda incompletos, as contas por fazer, o bom cheiro da carne assada que sai da cozinha – e nada de largar o sofá, pois por ali passam modas que o tempo não apagou. Uma delas, “Saudades de minha terra”, é um hino ao Brasil que se arrependeu de crescer, se urbanizar, arrancar as raízes, perder a inocência.
Chelsea x Newcastle? Campeonato italiano? Clássico holandês? Tênis, maratonas, futebol americano? Nada, por esses eu já teria me abraçado ao computador. Hoje é dia de música caipira, das cantigas de roda, do samba que vem de terras capixabas, da música que é tão diversa quanto eclético é o país.
Ameaça estiar lá fora, uma pena, era confortante o som da água batendo em pingos cadenciados na telha do vizinho. Mas o frio permanece, e tem a ver com o aconchego da ocasião, com a viola de 12 cordas, com o acordeão bem manejado.
Depois que as duplas se vão, que o repertório de achados de Boldrin se esgota, que Inezita canta com os convidados, é a hora do sacrifício, dos artigos inconclusos, das contas que nunca fecham. Já tenho o tema da crônica, sempre engendrada nos acréscimos do segundo tempo, penso comigo. O duro é a falta de tempo para ir ao Youtube e rever algumas coisas, fustigar a memória e, depois de uma tarde de dureza, parir um texto palatável.
Mas à noite, em outro canal, eis que surgem Chico, Caetano e Tom, e a crônica só sai desse jeito, meia boca, lá pela madrugada…
Jornalista, cronista e escritor fez carreira no jornal O Estado de Florianópolis, destacando-se como pesquisador cultural. Autor dos livros Pequena História do Teatro Álvaro de Carvalho e Mercado Público e suas histórias. Atualmente trabalha no jornal Notícias do Dia e na Agência de Comunicação da UFSC.
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