Condomínio
_ Pai… Pai… Ô pai… Ô pai… Ai, pai! Ai, paaai! Ai, Jesus! Ai, Jesus! Diz, baixinho, a filha. No apartamento 303 o homem velho acaba de morrer. Exatamente um mês após a cirurgia que lhe prolongaria a vida evitando as inconveniências da doença crônica. Adorava viver, por isso preferiu se antecipar à doença. Era um homem de resultados, dizia. Apostou alto. Perdeu.
Enquanto a família chora cuidando para não acordar a mãe idosa que dorme no quarto ao lado, chegam os socorristas para atestar a morte e levar o corpo (na cidade, ao morrer, o ser humano – não importa seu nome, sua história, suas obras -, é reduzido a “o corpo”).
Seguindo o Manual de Procedimentos – é preciso evitar uma constrangedora queda acidental -, o “corpo” é atado a uma cadeira de rodas com o cordão do roupão que o velho usava minutos atrás. Cobrem-no da cabeça aos pés com o lençol da sua própria cama e o conduzem ao elevador. O espaço não comporta uma maca – prédios são feitos para os vivos -, por isso o “corpo” tem que ir sentado. Chega a ser grotesco de tão pragmático. – Mãe, o pai morreu…
No andar de baixo, insone, a mulher madura pensa nas contas vencidas, na falta de perspectiva, no amor que não chega. No apartamento ao lado, o recém-nascido chora, reclamando o seio da mãe. Um casal briga, aos berros, na noite. O vizinho interfona para a portaria reclamando que não consegue dormir. O porteiro responde que é preciso formalizar a queixa no Livro de Ocorrências, enquanto abre o portão para o entregador de pizza. É o sétimo esta noite. O reclamante desiste. Chove lá fora.
No apartamento 507, bloco B, a luz que chega através da sacada entreaberta ilumina a velha cristaleira. Nos objetos, o registro de uma vida: inúmeros copos de conjuntos desfalcados, uma bomboniere de cristal recortado em gomos, uma licoreira rosa com os respectivos copinhos – ela e o marido riam ao lembrar que ganharam quatro, exatamente iguais, como presente de casamento. Naquela época era chique -, o par de cavalinhos pretos em porcelana com acabamento dourado, uma arvorezinha de metal adornada de pedras brasileiras que alguém trouxe de viagem, xícaras avulsas enfeitadas com flores delicadas, a maioria sem pires. Quando os filhos eram pequenos, era ali que ela escondia as cestas de doces à espera da Páscoa e também o presépio de gesso entre um Natal e o outro.
Antes cuidadosamente arrumados sobre toalhinhas engomadas, hoje a desordem estética dos objetos denunciam sua falta de autonomia. Com a doença, desde a maneira de dispor os móveis até a roupa que ela veste, o que ela come ou a hora do banho, tudo é decidido pelas empregadas que se revezam em seus cuidados. Ela parece não se importar; apenas as visitas dos filhos, dos netos e dos bisnetos iluminam em seu rosto um sorriso.
No 902 o homem feio paga a moça bonita. Alheios ao mundo e ao que os cerca, no 803, o casal se ama pela primeira vez enquanto o som de um piano ecoa magicamente pela noite. (Não há piano algum. A música é ilusão, assim como o amor que eles pensam sentir nesse momento). No 311, Bloco D, o estudante abre a caixa que veio pelo Correio trazendo o pozinho mágico que, contraditoriamente, o liberta e escraviza.
No 403, a mulher, cujos filhos estão indo embora, olha o ninho vazio e descobre que a solidão é um grande silêncio que não cala, antes atordoa, ensurdece.
Sou eu esta mulher.
Natural de Florianópolis/SC. É graduada em História, pesquisadora, cronista e escritora, autora dos livros A Minha Aldeia e Cenas Urbanas e outras nem tanto. Colecionadora de rendas de bilro e revistas antigas. Filha do radialista e técnico em eletrônica Lourival Bruno, gosta de ouvir rádio desde pequeninha.
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