Vovô viu o Avaí
Sábado de manhã, encontrei Seu Ribeiro no Mercado Público. Não tenho dúvida: Seu Ribeiro é um dos homens sérios do Brasil. Hábitos moderados, de casa para a Assembléia de Deus, da Assembléia de Deus para casa. Raramente o vejo na cidade. Nessas ocasiões, comenta o tempo, fala alguma coisa da nossa dura vida terrena e vai logo embora, distinto.
Por Flávio José Cardozo
Pois no sábado não reconheci Seu Ribeiro: lá estava ele, imaginem, com uma camisa e um bonezinho do Avaí e, seguro pela mão direita, um menino de uns oito anos também com uma camisa e um boné do Avaí. Será mesmo Seu Ribeiro? – pensei. Era, era. Jamais ia eu supor que tão circunspecto homem gostasse de futebol, menos ainda que fosse capaz de torcer por algum time de modo tão festivo. As surpresas que o mundo nos revela! Não me contive, manifestei-lhe meu espanto. E eis o que Seu Ribeiro, baixinho como se passasse o mais terrível dos segredos, me disse:
– Não torço pelo Avaí, não. Não gosto de futebol.
E essa agora? Seu Ribeiro, o sério, na certa caçoava comigo – aquela, afinal, era uma manhã de prodígios. Poxa, um homem se paramenta daquela maneira, sai pelo Mercado mais avaiano do que poderia exigir o mais ortodoxo avaianismo, e diz que não torce pelo Avaí. Diz mais: que não gosta de futebol. Pode isso?
– E o boné, a camisa, o garoto uniformizado, Seu Ribeiro?
– O autor da tragédia é esse aí – explicou, botando uma certa doçura na palavra “tragédia” e indicando com um olhar o menino. – É meu neto mais moço, o Rubens. Meu genro é avaiano de botar camisa, boné, não no dia do jogo, mas já uma semana antes. Não perde um jogo. E sempre leva o Rubens. Mas não é que meu genro teve que viajar a serviço logo agora? Sobrou pro vovô.
– O senhor está muito bem – consolei.
– Estou ridículo – disse, sempre a meia voz. E mais baixo ainda: – E amanhã tenho de ir o jogo.
Se dependesse do entusiasmo de Seu Ribeiro, pobre Avaí. Querendo ajudar, falei que ia dar um domingo bonito, bom para espairecer, e que o neto ia ficar muito feliz com a companhia dele numa partida tão importante.
– Seja o que Deus quiser – resignou-se.
Fiquei com vontade de rever Seu Ribeiro. E ontem, por sorte, quase me esbarrei com ele perto do Correio. Fui logo ao assunto:
– E o jogo, Seu Ribeiro? Me diz como foi.
Pois não te conto, leitor. Conto, sim: é bonito. Mal me ouviu, Seu Ribeiro foi rindo. Diante de mim vi outro homem. Foram quinze minutos de conversa sobre a guerra, a barulheira, a emoção, a euforia. Os olhos de Seu Ribeiro cintilavam quando falou do neto: o jeitinho do neto morrendo avaianamente de paixão.
– Gostei. Gostei. Gostei.
Acho que periga Seu Ribeiro mudar de religião.
(Do livro Coisas do azul, a publicar)
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Jornalista e escritor, nasceu em Lauro Müller no Sul de Santa Catarina e reside em Florianópolis. Integra a Academia Catarinense de Letras desde 1985. Autor de uma dúzia de livros mantém intensa atividade junto às escolas em decorrência da adoção e estudo de seus livros. Trabalhos seus têm sido adaptados para o teatro e o cinema.
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